Fonte: Novo Jornal (09/12/2022)
Portugal-Angola: complexidade e reciprocidade nas relações geram acesos debates
Ministro português dos Negócios Estrangeiros considera que as relações entre Portugal e Angola estão numa fase de maturidade, mas admite que haverá sempre certo sobreaquecimento. Manuel Augusto, ex-ministro das Relações Exteriores de Angola e actual secretário para as Relações Internacionais do MPLA, fala sobre a necessidade de haver reciprocidade no tratamento dado aos cidadãos dos dois países.
Vladimir Prata
Convidado a participar na mesa redonda sob o tema ‘Portugal e Angola – Cooperação e Cultura: Aquilo que Nos Une’, promovida pelas associações LIÁFRICA e Casa da Cultura Angola Welwitschia, em Lisboa, João Gomes Cravinho, ministro português dos Negócios Estrangeiros, disse que a natureza do relacionamento entre os dois países é multidimensional, complexa e profunda. “Entre Portugal e Angola haverá sempre um elevado grau de calor humano, e esse calor leva, por vezes, a um sobreaquecimento, tal como acontece, por vezes, dentro das famílias, entre casais ou entre amigos próximos. Mas, a característica central da fase actual não é de sobreaquecimento; é simplesmente a consciência de que aquilo que nos une é infinitamente mais importante do que aquilo que nos separa”, realçou. O ministro, no cargo há oito meses e que já veie três vezes a Angola neste período, refere que os dois países já viveram muita coisa no seu relacionamento e têm a consciência de que poderá haver sobressaltos e problemas, devido à densidade do relacionamento, mas que têm, igualmente, em mente que esses sobressaltos serão forçosamente passageiros. “Inevitavelmente, a densidade do relacionamento trouxe algumas tensões e fricções de natureza superficial, essencialmente no plano privado das relações económicas, e outras mais profundas, que em determinados períodos ensombraram o relacionamento entre os dois países”, admitiu.
“Creio que esta fase em que nos encontramos é muito positiva e devemos tirar proveito dela. E creio que temos também agora algumas características que nos permitem certo optimismo quanto a isso”, disse, apontando os frequentes contactos políticos, visitas presidenciais dos dois lados e encontros oficiais entre membros do Poder Executivo dos de Portugal e Angola em cenários internacionais. Assinalou que, nos últimos quatro anos, foram assinados 50 instrumentos jurídicos bilaterais, como a convenção para evitar a dupla tributação, o acordo sobre transportes aéreos, a alteração ao protocolo bilateral para a facilitação de vistos, entre outros. “No início de 2023, faremos uma comissão mista intergovernamental com representantes de vários ministérios dos dois países, a fim de avaliar o ponto de situação da implementação destes e de muitos outros acordos”, informou. O ministro português dos Negócios Estrangeiros destacou as alterações importantes feitas na Lei do Investimento Privado em Angola, o que cria novas oportunidades e melhora as condições para o investimento directo estrangeiro, bem como realçou que Portugal tem de procurar responder ao objectivo de reforçar e diversificar a sua presença económica em Angola, correspondendo ao repto lançado pelo Presidente João Lourenço, para a diversificação da economia angolana
“Entre as potenciais apostas, para além da tradicional área da construção civil, destacam-se os sectores agro-alimentar, Energia e Águas, Turismo e saneamento, bem como Tecnologias de Informação”, disse, referindo que as empresas portuguesas já marcam presença em quase todos as áreas da economia em Angola, mas que há muito espaço ainda para a diversificação. João Gomes Cravinho assinalou, igualmente, que, em Julho de 2019, foi assinado o Memorando do Compacto Lusófono para Angola, um processo que conjuga mecanismos bilaterais de promoção de investimentos privados, assistência técnica e capacitação institucional com um maior de financiamento disponibilizado pelo Banco Africano de Desenvolvimento. “Através deste memorando, o Estado português dá um acordo de garantia até 400 milhões de euros ao BAD, o que lhe permite a alavancagem de fundos bastante mais significativos”, disse, informando que a maioria dos projectos submetidos até agora por Angola ao Compacto Lusófono pertence às áreas da agricultura e da energia. “Temos significativos desafios pela frente, com destaque para a melhoria dos mecanismos de apoio ao investimento em Angola, e a nossa expectativa é que as recentes mudanças no Banco de Fomento Português vão permitir outras perspectivas quanto à força e à capacidade de apoiarmos o investimento em Angola”, destacou. O governante sublinhou, inclusive, que a cooperação bilateral Portugal/Angola está alinhada com as prioridades do Governo angolano em matéria de desenvolvimento e ajuda humanitária, realçando os projectos que se concentram no sector da Educação, incluindo capacitação e formação, e no sector da Saúde. Falou do projecto FRESAN, no sector agrícola, que já abrangeu mais de sete mil famílias angolanas e que teve um reforço recente de 10 milhões de euros.
Descolonização caótica de Angola
Na sua intervenção sobre o tema ‘Portugal e Angola – Cooperação e Cultura: Aquilo Que Nos Une’, João Cravinho começou por manifestar a sua satisfação, por estar a partilhar o momento com o seu pai, o engenheiro João Cravinho, ex-ministro português de Equipamento, Planeamento e Administração do Território, presidente da Comissão de Honra da Casa da Cultura Angolana ‘Welwitschia’ e fundador da LIÁ-FRICA, tendo referido que foi dele que “herdei a consciência de que Angola faz parte de nós”. O ministro discorreu sobre a história das relações Portugal/Angola, realçando que a guerra civil após a independência, apesar de acontecer a milhares de quilómetros de Portugal, devido à qualidade daquilo que era Angola, a antiga colónia, “sobretudo também pela forma caótica do período da descolonização, era sentida como se fosse nossa também”. “Os Acordos de Bicesse representam não só um acordo dos angolanos, mas também uma reconciliação dos portugueses consigo próprios, no que toca a Angola. Provavelmente por ter havido um importante envolvimento dos portugueses no processo que levou a Bicesse, uma boa parte da população portuguesa terá, eventualmente, sentido que Portugal fez aquilo que não foi capaz 16 anos antes, quando se deu a descolonização”. João Cravinho considera que tanto em Portugal como em Angola foram vividos momentos de grande alegria e, apesar de todas as complexidades e dificuldades, aquele um ano e meio entre Bicesse e as eleições foi um tempo de larga esperança.
“Depois de Savimbi ter rejeitado o resultado das eleições e ter-se voltado à guerra, durante a década da segunda guerra civil (de 1992 a 2002), já não se viveu o conflito cá em Portugal com o mesmo tipo de proximidade. Aqueles que tinham alguma aproximação a Angola naturalmente se mantiveram atentos e preocupados. A diplomacia manteve-se activa, mas, para a população, no geral, Angola deixou de fazer parte das suas conversas quotidianas”, conta. Depois de 2002, segundo o político, milhares de portugueses rumaram para Angola como pequenos e grandes empresários, trabalhadores e, em alguns casos, até como simples aventureiros, referindo que o País retomou no imaginário português o lugar que ocupou em diversos outros momentos históricos. “Voltámos a ter uma presença muito forte de Angola nas nossas conversas, nas nossas televisões e na nossa realidade económica. A grave crise económica que afectou o mundo e, em particular, Portugal, a partir de 2008/2009, veio apenas acentuar essa relevância de Angola para Portugal e para os portugueses, num período que se assistia a uma evolução política e económica em Angola, que afectou a natureza e a qualidade da experiência de vida dos portugueses em Angola”. Para além do ministro português dos Negócios Estrangeiros, esteve presente no encontro o ex-ministro das Relações Exteriores de Angola, Manuel Augusto que é actualmente o secretário das relações internacionais do partido MPLA, entre outras figuras da vida política, social e cultural de Portugal e da diáspora angolana neste país.